quinta-feira, 18 de abril de 2013

Tânia Terezinha da Silva - Prefeita Negra

                            Conheça Tânia, a prefeita negra que governará em terra de alemães. 
                                                                       Foto: Livía Stumpf -Agência RBS
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A partir de 1º de janeiro de 2013, o município de Dois Irmãos, terra carregada de sotaque e costumes alemães, berço de um povo reservado e discreto, será comandado por Tânia Terezinha da Silva, prefeita negra, simpática, espaçosa e faceira que conquistou o eleitorado justamente por assumir sem ressalvas a alegria contagiante. Surgiu na campanha eleitoral a definição que abriga, na mesma frase, a forasteira negra e a cidade de colonização alemã, a popularidade de uma dobrando a desconfiança da outra, a acolhida que não deixa de evidenciar a maior diferença entre ambas:
— Tânia, tu és uma alemoa com película!
Dois Irmãos, terra de sotaque carregado que preza a arquitetura e a música típicas, o baile da linguiça, o joelho de porco e a cuca no prato do churrasco, elegeu Tânia Terezinha da Silva, 49 anos, primeira mulher a comandar os 27,5 mil habitantes do município do Vale do Sinos. Tomará posse em 1º de janeiro a técnica em enfermagem criada na vizinha Novo Hamburgo, vereadora de dois mandatos que conquistou rapidamente um povo em geral desconfiado e reticente. Mas esta não é uma narrativa épica de embate e vitória contra o preconceito, de lágrimas vertidas frente a injustiças impressas na cor da pele ou de uma relação parida a contragosto. Não parece exagero afirmar que os 9.450 votos conquistados de porta em porta, em uma campanha de pouca verba, foram angariados com sorrisos. A amante do Carnaval de numerosas tranças que misturam cabelo natural e sintético, esculpidas pela cabeleireira em sessões de nove horas, sempre erguida às alturas pelo saltão que pisa firme no paralelepípedo, é uma celebridade no Berço do Café Colonial.
— Olha para Dois Irmãos e olha para mim, preta desse jeito! Eu chamo a atenção — diverte-se a hamburguense. — Sou espaçosa. Isso vence barreiras.
A autodefinição combina com o que se observa na rotina da cidade produtora de calçado, formada por 91,5% de brancos e 1,5% de negros, que recebeu os primeiros colonos em 1825. Tânia percorre as calçadas fazendo escalas, a todo instante abordada para apertos de mão e abraços, trocando uma palavrinha com quem cruza o caminho e acenando para os que passam lá adiante.
Roza Antonia da Silva, mãe de Tânia 
Foto: Diego Vara/Agência RBS
— Linda! — grita o motorista que reduz a velocidade ao avistá-la posando para fotos.

Arrisca-se em meia dúzia de frases e palavras soltas no idioma que não conseguiu aprender em 20 anos. Acha as estruturas parecidas demais, restringe-se a "alles gute?" (tudo bem?), "alles blau?" (tudo azul?), "kuss" (beijo) e "danke schön" (muito obrigado).

— Não é fácil falar alemão. A língua tem que virar muito — concorda a dona de casa Edith Weimer, 65 anos, paciente da Unidade Municipal de Saúde do Travessão, onde Tânia cumpre seis horas diárias, esforçando-se para compreender o emaranhado de consoantes pronunciado pela prefeita. — Ela é ótima. Quando falaram que seria candidata, logo pensei que iria ganhar. A cor não tem nada a ver.

Tânia antes atendia pelo primeiro nome, agora tenta se habituar a formas de tratamento mais corteses.

— E para a senhora? — pede o garçom, conhecido de tantos almoços anteriores ao último 7 de outubro, ao anotar os pedidos de bebidas no restaurante.

— Senhora? Tânia! Meu nome é Tânia — reage ela, numa falsa careta de contrariedade. — Fora da prefeitura, quero um tratamento informal, quero ter contato, não quero barreiras. Na rua você colhe muita coisa, as melhores ideias — esclarece.

Filiada desde 1995 ao PMDB, partido que teve uma sequência de 20 anos no poder interrompida em 2008, Tânia representou a coligação Inovando para o Bem, composta ainda pelo PP e pelo PTB. Enfrentou o mandatário em exercício, Professor Miguel (PT), superando-o em 610 votos. A diferença que parece apertada, na opinião dela, é uma vantagem vistosa se comparada ao desprestígio que os peemedebistas se obrigaram a digerir ao final da apuração de 2008. No início deste ano, pesquisas internas da sigla sinalizavam a boa aceitação do nome da candidata em uma eventual disputa majoritária.

— Ela sempre foi de se doar, querendo ajudar e fazer o bem ao próximo. Humilde, simpática, mulher guerreira, lutadora. Vimos nela a possibilidade de ocupar um cargo público — lembra Renato Dexheimer, duas vezes prefeito e hoje presidente do PMDB, que ofertou a possibilidade do início da carreira política, nos anos 90.

O gosto pela vida de palanque surgiu bem depois da descoberta da primeira vocação. A "nenê" entre seis irmãos, "uma criança diferente, que não era arteira e não brigava", de acordo com a mãe, a doméstica e zeladora aposentada Roza Antonia da Silva, 83 anos, optou cedo pela área da saúde. Frequentou escolas particulares como bolsista, abatendo a maior parte do valor das mensalidades. A família esticava o orçamento apertado para caber no mês, mas nunca lamentou grandes carências. Eram os únicos negros da Vila Rosa, em Novo Hamburgo, e Dona Roza — que acha graça do próprio nome, registrado com "Z", estranheza que nunca viu igual — garante que jamais sofreram qualquer distinção na vizinhança. Pedro Lindomar da Silva, o Negrão Mario, chefe da casa, trabalhava como motorista de uma família importante. Nos finais de semana, ficava com o carro dos patrões — um Corcel azul, depois um Opala branco, ambos quatros portas —, ocasiões em que a caçula aproveitava para fazer pose de rica. Tânia anunciava, já na infância, a vontade de ser enfermeira. “Mas tu vais lidar com ferida”, alertava o pai, falecido em 1981.

— Via um colega feridento, outro vomitando, e não tinha nojo. Ela veio com esse dom de ajudar as pessoas — garante Dona Roza, generosa nos detalhes em qualquer resposta.

Com o ingresso no Ensino Médio, entre magistério, contabilidade e técnico em enfermagem, a escolha foi fácil. No segundo ano do curso, apareceu a oportunidade de trabalho como atendente no Hospital Regina, onde começou a exercitar o destemor aflorado precocemente. Era responsável pela higienização dos pacientes, trocando fraldas e dando banho naqueles que por vezes nem podiam deixar o leito.

— Eu adorava. Descobri o valor da vida. Aprendi que tudo muda num acidente, num segundo — ensina Tânia, que saía às 22h e voltava à Vila Rosa de bicicleta, os pais fazendo-lhe companhia a partir de certo ponto.

Logo o primeiro emprego virou dois, e a técnica em enfermagem preencheu o turno da tarde no Hospital Geral. Começava às 7h em um, estendia-se até as 19h30min no outro, restando meia hora para o almoço no deslocamento entre ambos. A rotina de plantões em finais de semana e feriados pesou ao casar com o mecânico Reneroges Barreto de Souza, hoje professor de Educação Artística, e principalmente com o nascimento de Pablo, em 1988. Sonhava com um expediente de segunda a sexta-feira, e a oportunidade cintilou em um anúncio de jornal. Prestou o concurso de vaga única em Dois Irmãos, em 1989, e assumiu dois anos depois, circulando por todos os bairros em uma unidade móvel de saúde. Começava a se alicerçar ali a relação de confiança e proximidade que se provaria fundamental no futuro. Tânia conhecia de perto as miudezas de cada localidade — e ouvia atenta a comunidade que acabaria por elegê-la em três pleitos.

De 1991 a 1994, viveu entre as duas cidades, distantes cerca de 15 quilômetros. Hohana nasceu em 1992, e para ficar mais perto dos filhos a mãe decidiu que viajaria com eles todos os dias. Acordava às 5h, preparava os irmãos para o percurso em dois ônibus e os deixava em uma creche de Dois Irmãos antes de chegar, sempre com 10 minutos de atraso, à prefeitura. Ao final do dia, mais dois trechos em coletivo para o retorno, com um acréscimo na bagagem.
Seu Zéca, proprietário do armazém mais conhecido de Dois Irmãos 
Foto: Diego Vara/Agência RBS
— Era tudo com fraldas de pano, lavadas com sabão de coco ou glicerina, passadas dos dois lados para não dar alergia na bundinha. Tirava o excesso de cocô e colocava em uma sacola plástica, dentro da mochila — explica, rindo ao lembrar do odor que a golpeava na hora de abrir a embalagem no destino final. — Mãe não sente cheiro ruim, né? E quando vê está limpando o nariz dos filhos com os dedos — completa.
A jornada seguia com o jantar das crianças, a sessão no tanque e as demais tarefas domésticas. Depois de quatro horas de sono, tudo outra vez.
Novo Hamburgo crescia, os contratempos e as mazelas de cidade grande se impunham, e o apelo das casas sem grades e dos jardins floridos incentivou a troca definitiva de endereço. Os dias se alargaram, sobravam horas para os filhos. Tudo ficou mais fácil, mesmo sem carro. Em seguida, vieram o convite de Dexheimer para a entrada no PMDB e a estreia como vereadora, eleita em 1996. Ficou como suplente ao concorrer pela segunda vez, quatro anos depois, quando assumiu como coordenadora do Posto 24 horas, que concentra todos os atendimentos de urgência. A esfera pessoal também sofreu transformações no período, e o casamento não resistiu à entrada do novo milênio. Os boatos de apocalipse que rondavam o noticiário com a proximidade da troca de dígitos no calendário apressaram o divórcio.
— Não deu certo, não foi traição. Como eu poderia começar o novo século infeliz? "O mundo vai acabar e eu estou infeliz?", pensei — relata, quebrando um segredo assegurado por lei para provar que a convivência com o ex permanece harmoniosa até hoje: — Ele sempre vota em mim.
Os anos 2000 propiciaram um encontro — juntos até hoje, Tânia e João Neves, 58 anos, presidente da Associação das Entidades Recreativas, Culturais e Carnavalescas de Novo Hamburgo, compartilham a paixão pelos desfiles. Militante do PT, Neves reduzia os deslocamentos no carro repleto de adesivos quando ia a Dois Irmãos para ver a namorada.
— Eu respeito as ideias dela, ela respeita as minhas.
Encontram-se nos finais de semana e nas quartas-feiras. Gostam de tomar chimarrão na Praça do Imigrante, acompanhados por Pablo, 24 anos, estudante de Biomedicina, e Hohana, 20, aluna de Enfermagem. Mãe e filhos experimentam uma felicidade ruidosa, que obrigou o síndico do condomínio a encaminhar duas notificações por escrito – sem contar as demais, verbais. Cada um com seus motivos: Tânia pela bateção do salto alto no piso, Pablo por conta da dedicação incansável à guitarra, Hohana com uma risada que atravessa paredes. Até a gata, recepcionada como Fred, mais tarde rebatizada de Frida, integra o time do barulho.
— Nossa, mas que gato mais bicha. Que pelo mais lisinho — surpreendeu-se Tânia ao adotar o bichano sem lar. — Não é que ela entra no cio e se apaixona por um gato lá de baixo, na calçada? — conta, às gargalhadas, apontando a ampla sacada.
O apartamento estremece com os acordes de heavy metal, mas o amor irrestrito da peemedebista é pelas escolas Cruzeiro do Sul e Protegidos da Princesa Isabel, na terra natal. Tão notório que inflamou boatos. Na última campanha, circulou entre os eleitores o alerta de que, caso eleita, Tânia transformaria o solo dois-irmonense em passarela permanente para a folia do samba.
— É verdade que tu vais acabar com o Kerb de São Miguel? — indagavam os moradores, temerosos pela ameaça a sua festa mais tradicional.
Os idealizadores da candidatura providenciaram material específico para serenar os ânimos dos guardiães da valorosa herança colonial. "Qualificar ainda mais o kerb é um compromisso nosso", prometia o santinho distribuído pela coligação. Enquanto o adversário contratava carros de som suficientes para cobrir todo o perímetro urbano, Tânia e o vice, o vereador Jerri Adriani Meneghetti, 33 anos, tentavam multiplicar com a sola dos sapatos os R$ 120 mil do caixa. Intensificavam as visitas a partir do meio da manhã, respeitando o gosto dos telespectadores locais pelo Mais Você, programa de Ana Maria Braga que começa às 8h30min na Globo, e a preparação do almoço. De tarde, nova rodada. Nos dias mais produtivos, visitavam até 70 residências, eventualmente aceitando convites para entrar e tomar um cafezinho.
— Dizia: "O nosso comprometimento é com o trabalho, a verdade e a transparência", olhando nos olhos da pessoa — detalha Tânia, que pretende concentrar forças no "arroz com feijão", qualificando o atendimento básico nos cinco postos de saúde.
Por certo o perfil efusivo da postulante não era celebrado como unanimidade. Houve desconfiança, e alguns cochichos se ocupavam em debater uma incerteza: o guarda-roupa colorido, o cabelo chamativo e o comprimento dos vestidos da possível administradora comprometeriam a reputação de Dois Irmãos?
— A cidade é conservadora, e a Tânia é "dada", abraça todo mundo. Por ela ter esse jeito meio faceiro, o alemão tradicional poderia ter a ideia de falta de seriedade. No início, muitos políticos não a apoiaram. A partir do momento em que a campanha tomou corpo, eles entraram – comenta o jornalista Mauri Marcelo Toni Dandel, editor-chefe do Diário da Encosta da Serra.
Vereador reeleito, preparando a transferência da situação para a oposição no próximo mês, Joracir Filipin (PT) faz o balanço de uma convivência tranquila na atual legislatura, talvez com alguma discussão mais acalorada – Tânia, segundo ele, não é afeita ao confronto e ao debate. Contabiliza os projetos levados à Câmara para medir a produtividade de ambos.
— Eu aprovei nove, ela aprovou um, dando o nome de uma rua. Faltou empenho, né? Como vereadora e gestora da área da saúde, poderia ter se empenhado mais – critica Filipin, orgulhoso idealizador de uma versão local para a Lei da Ficha Limpa e do Mês do Café Colonial, comemorado em julho, para fomentar o comércio.
Meneghetti, atual presidente da Câmara, confere os arquivos e sai em defesa da companheira de chapa, salientando que os projetos representam apenas um dos instrumentos de ação à disposição do Legislativo.
— A Tânia aprovou dois projetos nesse sentido (nomes de rua) — corrige, frisando o número. — E a maioria dos projetos do vereador Joracir foi sugerindo nome de rua – acrescenta Meneghetti, com um tom de reprimenda pontuando a frase.
Com o acirramento da disputa, apostadores de botequim definiam trincheiras. Operante há mais de meio século, o Armazém Scholles, carinhosamente referido pela clientela como Shopping Scholles ou Iguatemiro, dado o sortimento a brotar das prateleiras, sediou rodadas de carteado e palpites valendo dinheiro, cerveja ou "um galetinho".
— Vamo na pretinha? Vamo, vamo na pretinha. Vamo meter na pretinha porque ela é simpática e faz tudo — diz o proprietário, José Scholles, 60 anos, reproduzindo o que ouvia nas mesas em frente ao balcão, onde um pote plástico repousava com ovos em conserva em uma recente tarde calorenta.
Dois Irmãos concluiu depressa a apuração dos votos de seus 21.279 eleitores. Dona Roza acompanhava o dia mais importante da história pública da filha e narra, admirada, o que enxergou debaixo daquelas nuvens carregadas ao final de um domingo.
— Choveu, e aquela gente de idade olhando pro céu, tudo chorando, parecia que estavam agradecendo! Aquela gente chorando e rezando e agradecendo. O que passou nessa cabeça dessa gente? E hoje estão com toda aquela esperança na Tânia. Eu nunca chorei por um candidato. Não deu pra mim entender isso. Votei e voto, me orgulho, mas nunca chorei. Eu nunca vi isso aí. Não deu pra chorar nem nada. Fiquei traumatizada, sei lá eu o que que me deu. Me botaram em cima do palco do ginásio, chovia por cima e por baixo, me arrastaram lá pra cima.
A aposentada ainda não providenciou o traje para a posse. Estará lá, apesar dos incômodos da artrose nas pernas e nas mãos e já imaginando um certo aperto no peito, aflita com o aumento de responsabilidades e cobranças que prevê pelos próximos quatro anos para a caçula.
— Geralmente, todos querem mais do governo, do presidente, do prefeito. Sempre fica faltando. Não dá para atender tudo também, né? — pondera Roza. — Mas é muito fácil conviver com a Tânia. É de Câncer, um signo muito fácil. Estou emocionada. O pai dela poderia estar aí pra ver.



Um comentário:

  1. Parabéns muito axé, estamos precisando de muita representatividade afro-brasileira em todos os setores da nossa sociedade.

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