Babá brasileira virou professora universitária e luta por
direitos dos domésticos nos EUA
DEPOIMENTO A
JOANA CUNHA
DE NOVA YORK
JOANA CUNHA
DE NOVA YORK
Há 20 anos, a brasileira Natalicia Tracy desembarcou nos EUA
acompanhada de um casal de médicos, também brasileiros, que a contrataram para
ser babá por um período de dois anos, enquanto eles realizariam pesquisas em um
hospital de Boston.
Ela pretendia aproveitar a oportunidade para ir à escola,
aprender inglês e, assim, procurar um novo emprego quando voltasse. Porém, foi
impedida de estudar, de falar com a família e submetida a condições
degradantes. Hoje, ela é ativista, diretora do Centro do Imigrante Brasileiro
em Massachusetts e Connecticut e uma das lideranças na ampliação dos direitos
dos trabalhadores domésticos no país. Leia o depoimento dela:
*
Eu entrei nos Estados Unidos há 20 anos com documentação em
dia: tinha um visto pelo contrato de babá para cuidar da criança de um casal de
médicos brasileiros, que veio morar aqui para desenvolver pesquisas em um
hospital em Boston.
Quando ainda estávamos no Brasil, eles me prometeram que eu
poderia estudar, conhecer a cultura americana e aprender inglês, que era o que
eu mais queria, porque eu só tinha estudados até a oitava série.
Viajei cheia de expectativas, mas não foi isso o que
aconteceu quando cheguei.
Além de cuidar da criança de três anos, fiquei responsável
por todo o trabalho doméstico: cozinhar, lavar e passar. Isso acontecia de
segunda a segunda, sem folga.
Não me deixaram ir para a escola. E logo tiveram uma segunda
criança, o que aumentou o meu trabalho e acabou com o meu sonho de estudar
inglês.
No começo, me deram um quarto, mas depois, como recebiam
muita visita, me colocaram para dormir em um colchão no chão da varanda.
O local era protegido apenas por um vidro bem fininho, e
quando chegou o inverno, eu tinha que cobrir o chão com jornais e usava o
aquecedor portátil.
Fiquei doente e tive uma reação alérgica por causa de um
produto para limpar o tapete. Não me levaram ao médico, mas permitiam que eu
usasse o restante do produto de inalação da criança.
Comida, me davam só quando sobrava. Caso contrário, eu tinha
de comprar.
Mas eu só podia escolher um sanduíche de US$ 1,00 no
McDonald's porque o meu salário era de US$ 25 semanais.
Pegaram o meu passaporte dizendo que iam renovar o meu visto
de trabalho, mas nunca renovaram. Eu fiquei ilegal nos Estados Unidos.
Quando eu pedia para estudar, a mãe dizia que eu era ingrata
e que qualquer pessoa na minha situação beijaria o chão onde ela pisasse por
ter me dado a oportunidade de estar em um país de primeiro mundo.
O pior de tudo foi terem me impedido de me comunicar com a
minha família no Brasil. Diziam que o telefone era muito caro e não permitiam
que eu colocasse meu nome na caixa de correio da casa deles. Naquela época, o
carteiro não deixava as correspondências se o nome não estivesse na lista.
Dois anos se passaram e, quando chegou a hora de eles
voltarem ao Brasil, eu pedi para ficar no país.
Quando eu andava na rua, sem saber falar inglês com ninguém,
pensava até que seria melhor se um carro me atropelasse. Então, aprendi algumas
palavras com um pequeno dicionário que eu trouxe na bagagem.
Achei no jornal de anúncios um emprego de babá para uma
família americana. Eles me deram quarto, roupas novas, me pagaram o transporte
para eu ir à escola e não aceitaram a minha oferta para trabalhar de graça. O
meu salário era de US$ 100 por semana.
Fui para a faculdade, me casei com um americano, fiz
mestrado e estou terminando o meu doutorado em sociologia na Boston University.
Conheci a comunidade brasileira e me envolvi com o centro de imigração.
Hoje, sou professora na University of Massachusetts Boston e
diretora-executiva do Centro do Imigrante Brasileiro em Massachusetts e
Connecticut.
Em parceria com outras organizações, lutamos para ampliar os
direitos dos trabalhadores domésticos nos Estados, uma questão sensível para a
comunidade brasileira.
Muitos trabalham por hora na limpeza doméstica, mas os
direitos são pouco reconhecidos nesses contratos. Me engajei nisso por causa da
minha própria existência.
A gente que vem de família mais simples está muito
acostumado a respeitar autoridade. Eu sabia que eu era invisível para eles, mas
não questionava.
Hoje, depois de estudar, eu compreendi que o que os meus
patrões brasileiros fizeram comigo naquela época foi tráfico humano.
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