quarta-feira, 17 de abril de 2013

Racismo e Cotas



Racismo e cotas
Arquivado em: Uncategorized — jorgeterra @ 20:52
Tags: alforriados, Brasil, Brazil, Bresser Pereira, cotas, England, escravagista, escravidão, FHC, ilegalidade, Inglaterra, liberdade, negros, racism, racismo, sequestradores, STF
Racismo e cotas
Luiz Felipe de Alencastro
Folha de S. Paulo, 7.3.2010
Pacto entre proprietários de escravos constitui o pecado original da
sociedade e da ordem jurídica do Brasil
Em 2010, os negros brasileiros passam a formar a maioria da população do país.
A mudança vai muito além da demografia. Ela traz ensinamentos sobre o nosso
passado e desafios para o nosso futuro.
No século 19, o Império do Brasil aparece como a única nação que praticava o
tráfico negreiro em larga escala.
Alvo da pressão britânica, o comércio de africanos passou a ser proscrito por
uma rede de tratados que a Inglaterra teceu no Atlântico. Na sequência do tratado
de 1826, a lei de 7 de novembro de 1831 proibiu o comércio de africanos no
Brasil.
Entretanto, 760 mil indivíduos vindos da África foram trazidos entre 1831 e
1856, num circuito de tráfico clandestino.
Ora, a lei de 1831 assegurava a liberdade imediata aos africanos introduzidos no
país após a proibição.
A partir daí, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram considerados
sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179 do Código Criminal de
1830.
Porém, o governo imperial anistiou, na prática, os senhores culpados do crime de
sequestro, deixando livre curso ao crime correlato, a escravização de pessoas
livres.
Imoral e ilegal
Os 760 mil africanos desembarcados até 1856 -e a totalidade de seus
descendentes- continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888.
Ou seja, boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no
Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda -
primeiro e sobretudo- ilegal.
Tenho para mim que esse pacto dos sequestradores constitui o pecado original da
sociedade e da ordem jurídica brasileira. Firmava-se o princípio da impunidade e
do casuísmo da lei. Consequentemente, não são só os negros brasileiros que
pagam o preço da herança escravista.Outra deformidade gerada pelo sistema refere-se à violência policial.
Depois da Independência, no Brasil, como no sul dos EUA, o escravismo passou
a ser consubstancial à organização das instituições nacionais.
Entre as múltiplas contradições engendradas por essa situação, uma relevava do
Código Penal: como punir o escravo delinquente sem encarcerá-lo, sem privar o
senhor do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena de prisão? O quadro
legal definiu-se em dois tempos. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, no
artigo 179, a extinção das punições físicas. “Desde já ficam abolidos os açoites, a
tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis.”
Conforme os princípios do iluminismo, ficavam preservadas as liberdades e a
dignidade dos homens livres. Num segundo momento, o artigo 60 do Código
Criminal reatualiza a pena de tortura: “Se o réu for escravo e incorrer em pena
que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites…”.
Com o açoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido o
dilema. Oficializada até o final do Império, essa prática punitiva atingiu as
camadas desfavorecidas, travando o advento de uma política fundada na
liberdade individual e nos direitos humanos. Uma terceira deformidade gerada
pelo escravismo afeta o estatuto da cidadania.
É sabido que até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros
alforriados, podiam ser eleitores de primeiro grau, que elegiam eleitores de
segundo grau, os quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de
1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores. Em 1882, o voto dos
analfabetos foi vetado.
Decidida no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava barrar o acesso do
corpo eleitoral aos libertos. Gerou-se uma infracidadania que perdurou até 1985,
quando foi autorizado o voto do analfabeto. Mas a exclusão foi mais impactante
na população negra, em que o analfabetismo registrava, e continua registrando,
taxas proporcionalmente mais altas do que entre os brancos.
Nascidas no século 19, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo
submergiram o país inteiro. Por essa razão, ao agir em sentido contrário, a
redução das discriminações que ainda pesam sobre os negros consolidará nossa
democracia.
Democracia
Não se trata aqui de uma lógica indenizatória, destinada a garantir direitos
usurpados de uma comunidade específica -como foi o caso, em boa medida, nos
julgamentos sobre as terras indígenas. Trata-se, sobretudo, de inscrever a
discussão sobre as cotas no aperfeiçoamento da democracia.

Nesse sentido, a arguição de inconstitucionalidade impetrada no Supremo
Tribunal Federal [que analisa a constitucionalidade do sistema de cotas da
Universidade de Brasília] revela-se obsoleta. Na verdade, as cotas raciais
beneficiaram e beneficiam dezenas de milhares de estudantes nas universidades
privadas no quadro do ProUni e 52 mil estudantes nas universidades públicas,
funcionando há vários anos, com grande proveito para a comunidade acadêmica
e para o país.
Os incidentes suscitados pelas cotas raciais são mínimos e muitíssimo menos
graves do que as truculências perpetradas nos trotes universitários. Como no caso
do plebiscito sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, o debate sobre as
cotas raciais atravessa as linhas partidárias. Aliás, as primeiras medidas de
política afirmativa relativas à população negra foram tomadas, como é
conhecido, pelo governo FHC.
A existência de alianças transversais deve nos conduzir, mesmo em ano de
eleição, a um debate onde os argumentos possam ser analisados a fim de
contribuir para a superação da desigualdade racial que pesa sobre a democracia
brasileira.
Luiz Felipe de Alencastro é historiador e professor na Universidade de Paris 4.
Este artigo é um resumo da fala apresentada no STF, como representante da Fundação Palmares.


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